sábado, 23 de abril de 2016

Família (José Luís Peixoto)




Família

A toalha de mesa era nova e só se usava nesses almoços de domingo. Havia uma garrafa de laranjada de vidro grosso ao centro da mesa, ao lado do vinho. Antes, o meu pai tinha-me mandado à venda. Levava uma alcofa com duas garrafas vazias. O cheiro do vinho tinto estava entranhado nas paredes. Nessas horas, fim da manhã de domingo, atravessava as fitas e não estava ninguém na venda, só a caixa das pastilhas de mentol e uma cadela que não se incomodava com a minha presença. Tinha de bater com a palma da mão no balcão, que me chegava à altura dos ombros, e, meio tímido, tinha de chamar: Ti Lourenço, Ti Lourenço. Quando chegava, trazia a sua calma e o seu bigode. Trocava a garrafa vazia de laranjada por uma cheia e acertava o gargalo da outra garrafa na torneira do barril. Eu pagava com o número certo de notas de vinte e moedas de cinco escudos.

Nesses dias, não faltava sol no quintal. Agora, parece-me que eram sempre domingos de uma primavera em que já se imaginava o verão. E as galinhas debatiam um assunto calmo na capoeira, as coelhas ameigavam os filhos na coelheira, os pombos atiravam-se em voos desde o pombal. A claridade desse tempo entrava pela janela e pousava sobre a mesa posta, a melhor terrina com canja, os melhores copos, os guardanapos dos dias de festa. A televisão a cores brilhava. Estava ligada e não importa o que estivesse a dar, programas religiosos, concertos em Viena, grandes prémios intermináveis de automobilismo, qualquer coisa era boa e acrescentava cor à nossa tarde. Eu tinha entre seis e treze anos (1980-1987).

Depois, chegou uma altura em que essa toalha de mesa, já mais desbotada, começou a ser usada nas refeições dos dias de semana. Lavada muitas vezes, tornou-se mais suave ao toque. Ganhou nódoas que já não saíam e, um dia, tornou-se demasiado velha até para esse uso. Então, a minha mãe rasgou-a e transformou-a num esfregão. Agora, até esse dia é remoto. Até o dia em que a minha mãe decidiu pôr o esfregão no lixo é remoto.

Esses almoços de domingo moldaram a minha vida.

Quando era pequeno, qualquer tarefa me absorvia por completo. Se decidia fazer uma torre de lego, não tinha mais pensamentos enquanto escolhia as peças e as encaixava umas nas outras. Hoje, não há nada que seja capaz de me prender a atenção dessa forma. Aconteceram muitas coisas ao meu olhar.

Tenho a idade que os meus pais tinham durante esses almoços e pergunto-me se eles olhariam para mim da maneira que eu, agora, olho para os meus filhos. Nesse tempo, os meus filhos e as minhas sobrinhas não existiam. A parte do mundo em que eles não existiam era cruel. Talvez os meus pais já fossem capazes de imaginar este momento, eu crescido, estas crianças à mesa, a minha mãe com setenta anos e o meu pai sem estar cá.

Pergunto-me como é que a minha mãe, que foi menina num tempo que imagino a partir de poucas fotografias, que tratou de todos os almoços de quando eu era pequeno, vê este tempo, sentada no seu lugar, a ser tratada por avó pela voz destas crianças à espera de crescerem e de, também elas, ocuparem todos os lugares da mesa.

Chego a casa de uma das minhas irmãs. A televisão está ligada num dos canais de desenhos animados. As vozes fingidas dos bonecos misturam-se com as nossas vozes, reais, a dizerem palavras que, para mim, com trinta e oito anos, são demasiado nítidas.

Sinto-me culpado. Diante de todas as escolhas, como diante de cruzamentos, quando escolhi caminhos que me afastavam dos almoços de domingo, senti-me sempre culpado. Os almoços nunca são na minha casa. Não tenho casa para almoços de domingo.

Recebo mensagens no telemóvel a lembrarem-me de trabalhos que tenho de fazer até amanhã. Não os tinha esquecido, claro. As minhas sobrinhas e os meus filhos falam de algo que não entendo, um jogo de computador, o Justin Bieber ou um lutador de wrestling. As minhas irmãs entram nas divisões com travessas saídas do forno. A minha mãe pergunta-me se já paguei a segurança social. Está preocupada. Depois de lhe garantir que vou pagar amanhã, repete esse pedido três vezes, quatro vezes. Olho para ela e, em silêncio, peço-lhe para não envelhecer mais.

A toalha de mesa é nova. A toalha de mesa é sempre nova.



José Luís Peixoto 


(Fonte: Revista Visão, Sexta feira, 12 de Abril de 2013)



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