terça-feira, 12 de novembro de 2019

Ilustração e palavras de Clara Não


"estou mesmo chateada com os monstros do estado que podem melhorar a vida de centenas de crianças doentes e nada fazem.

desenhei a minha raiva, através de uma senhora simpática mas sincera, não fosse ela fazer parte de uma nova agência de viagens que criei, chamada "Maria Sincera das Dores", especialista em viagens sinceras e em mandar monstros insensíveis para o c******.

estou mesmo chateada"

Clara Não


ENTREVISTAS 27. 12. 2018

Clara Não: “‘Well-behaved women rarely make history.’ Ainda hoje tenho este papel e sempre que olho para ele sorrio, porque é verdade.”

by Beatriz Teixeira

Clara Silva é Clara Não, uma Clara dos sete ofícios que nos tem lembrado com ilustrações infantis e palavras tortas que as verdades são para ser ditas, assim de uma forma muito crua, com palavrões e tudo, se for preciso. E podia ser só um ato de rebeldia, mas é muito, muito mais que isso. Porque Clara não fala de pelos, de vaginas, de bolsos das calças demasiado pequenos e de direitos das mulheres só por si e porque sim, fá-lo por todas nós que nos sentimos mais culpadas do que capazes quando é preciso dizer que não. Porque não é não, já dizia Clara. E quando começamos a dizê-lo, caramba, sabe mesmo bem.

Clara Não é ilustradora, artista, designer, escritora e tantas outras coisas. São muitas formas de manifestação, mas qual é sempre a sua missão?

A minha missão é dizer o que a maioria das pessoas tem medo de dizer e mostrar que não estamos sozinhas a pensar nisto. Isto é importante porque sinto que as pessoas pensam muito: “serei só eu? sou eu a esquisita?” – eu penso também muito assim. Por isso, a partir dos meus sentimentos, tomo como minha missão fazer com que as pessoas se sintam menos isoladas nos seus pensamentos, que encontrem outras pessoas que estejam na mesma situação. Além disso, falar de problemas e dilemas pessoais e da sociedade é abrir diálogo para se entender melhor as coisas, em vez de andar a dizer disparates com opiniões malformadas. São esses bitaites que me fazem comichão. Posso dizer que a minha missão é tratar de comichões antes que acabem em feridas?

E quem é a Clara no meio disso tudo? Eu sou uma mulher independente que finalmente encontrou o que queria fazer. Andei muito tempo sem saber o que queria. Experimentei o que achava que poderia funcionar, conforme os meus gostos, e foi assim que aprendi o que não gostava. Pode-se dizer que sou mimada nisso, porque fiz birra com o que não queria fazer até encontrar o que queria. Quando descobri, não fiquei à espera que as coisas acontecessem, dediquei-me às minhas ideias. Com isto não quero dizer que só faço o que quero, mas antes que procuro sentir-me realizada com o meu trabalho, seja ele qual for.

Diz muitas verdades na sua escrita e nos seus desenhos, e ensina-nos a dizer mais vezes “não”. Também se está a ensinar a si própria?

(A resposta vai parecer irónica) Sim. É muito mais difícil dizer não do que sim. Com um sim não se contesta nada, aceita-se. Disse muitas vezes que sim, quando devia ter dito que não, porque tive medo de me impor. O que acontece agora é que digo não quando quero dizer que não. Aprendi que devo a mim mesma ser sincera e honesta, por respeito a mim e por respeito aos outros. Ninguém vai estar sempre pronto a defender-me sem ser eu própria. Mesmo assim, muitas vezes sinto culpa e ansiedade por dizer não. Isto de aprender a dar voz a nós próprias é um caminho longo com estradas mal pavimentadas.

(Continua na revista Vogue, 27.12.2018)